A Cegueira da Alma
E no banco de trás de seu carro, ocultado pelos vidros escurecidos, ele apenas observava a penúria dos presentes enquanto deixava o local.
Não conseguia mais sentir pena nem remorso. Seu coração era apenas uma engrenagem essencial para o funcionamento do sistema, mas mecânico por natureza: batendo seu tumtumtum ritmado e incessante durante anos. Já havia a muito se esquecido de sua principal função: prover emoções a máquina à qual pertencia.
Então, como um robô, continua olhando pela janela. Não consegue mais notar as diferenças entre as pessoas, vê a todos como gado, como parte de um rebanho. Uma criança ou um adulto, tanto faz. Não se importa com pessoas, mas sim com números, estes sim seus grandes amigos.
Não consegue notar o caminho, agora seco, feito por uma lágrima que correra sobre o rosto empoeirado e envelhecido de uma mulher sentada a beira da calçada. Não percebe a dor e o sofrimento carregado no olhar descrente e trsite da velha senhora. Não consegue notar o tom acinzentado do ambiente, nem sequer o pó que inalava enquanto ansiava por sair dali.
Tudo aquilo, antes tão penoso, se tornara sua rotina. Feita como o trabalho de um empregado descontente, mas astuto, que conhece o poder das máscaras, da maquiagem e dos disfarces, e sabe como utilizá-los da melhor forma a fim de enganar seus patrões.
Já perto de deixar a pracinha, passa distraído em frente à vendinha vazia. Vazia de clientes e produtos, já que não havia muito o que comprar por ali, nem mesmo dinheiro para tal.
Então passa por um cachorro magro que vagava triste pela rua. Que ainda parou diante do carro e abanou o rabo, quem sabe em sua última esperança de uma migalha. Mas saiu ligeiro, para poupar sua vida, da frente do veículo que não reduzira a velocidade. Passando pelo animal, abre uma estreita faixa do vidro e lhe atira um pedaço do que estava saboreando. Este, por sua vez, usa do olfato para rapidamente localizar o alimento e engole sua refeição sem sequer mastigá-la.
E assim como o pobre cão, centenas de pessoas sofridas estavam ali para mais uma de suas derradeiras batalhas pela vida. Atrás de um apoio ou de uma esperança. Muitas delas atrás de comida mesmo! E todas assistiram a cena do cão, sem sequer ter a chance de roubar do pobre vira-latas o almoço tão desejado...
E há quem possa duvidar da veracidade dos fatos. Mas lhes garanto: isto não é um conto de 1° de abril. Isto acontece todos os dias em nossas ruas!
Cure sua cegueira...
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